Detalhe da capa de 'O universo numa casca de noz', que ganhou nova edição brasileira.
(Edilson Crema - Ciência Hoje) Em 1905, Einstein publicou dois artigos que plantaram uma crise teórica profunda na física, que persiste ainda hoje. O primeiro traz a explicação quântica do efeito fotoelétrico, e afirma que o eletromagnetismo de Maxwell, “operando com funções espaciais contínuas, leva a contradições quando aplicada aos fenômenos de emissão e transformação da luz”. Essa interpretação instaurou uma esquizofrenia onda-partícula na matéria, cujo desdobramento foi dar na mecânica quântica (MQ) e no seu princípio fundamental, o princípio da incerteza (PI), que aboliu a noção de trajetória contínua de uma partícula no espaço. O outro artigo expõe a “teoria da relatividade restrita”, que, contrariamente à quantização, é inteiramente fundada nas “funções espaciais contínuas” do eletromagnetismo. Há, portanto, uma incompatibilidade de base entre esses dois artigos, em nada alterada com a “teoria da relatividade geral” (RG), proposta por ele em 1916.
Em 1909, Einstein ainda tentou, sem sucesso, resolver essa contradição eliminando a ideia abstrata de partículas (fótons) e substituindo-a por aglomerados de ondas eletromagnéticas contínuas. Mais tarde, tendo de se curvar ao sucesso da interpretação probabilística da MQ, ele voltou seu esforço intelectual para a tentativa de encontrar uma interação que unificasse todas as forças da natureza conhecidas, as eletromagnéticas e a gravitacional. Porém, a descoberta do núcleo atômico, com as suas forças nucleares fraca e forte, tornou mais complexo esse trabalho de unificação, que continua sendo o maior desafio teórico da física, principalmente quando se considera que a MQ também deve ser incluída. Esse ambicioso projeto tem sido chamado, não sem exagero, “teoria do tudo”.
O maior entrave para se alcançar essa pretensiosa teoria é a reunião do que Einstein separou em 1905, isto é, a união da MQ com a RG numa “gravitação quântica”. Como o PI impede que os estados fundamentais dos campos (e o vácuo) tenham energia nula, “infinitudes” constrangedoras nas massas e cargas das partículas são produzidas na quantização dos campos.
Essas infinitudes só foram eliminadas completamente com a ousada hipótese de que as partículas são vibrações em diminutas cordas, o que, no fundo, guarda semelhança com a frustrada tentativa de Einstein em 1909. Recentemente, demonstrou-se que as cinco possíveis teorias das cordas podem ser diferentes limites de uma possível “teoria do tudo”, chamada de Teoria M (de mistério?), a qual exige que vivamos em 10 ou 11 dimensões.
Visto de um voo assim tão panorâmico, esse é o pano de fundo do cenário onde se move O universo numa casca de noz, que ganhou nova edição brasileira em 2009. Num estilo ainda mais leve e bem humorado do que em seus livros anteriores, Stephen Hawking navega nas teorias mais especulativas e complexas da física atual, tentando traduzi-las em linguagem simples (nem sempre com sucesso). A mola propulsora do livro é sua hipótese de um tempo imaginário associado ao nosso tempo real, astucioso artifício matemático para introduzir uma dimensão espacial extra à RG e simular como a MQ moldaria o tempo e o espaço. Com essa hipótese, as soluções das equações da RG mostraram que as mais prováveis histórias do universo são representadas no diagrama espaço-tempo por uma esfera rugosa, à semelhança de uma noz.
Hawking vale-se de um grande número de figuras muito bem confeccionadas, o que torna a leitura do livro fácil e agradável, porém a profundidade das discussões deixa a desejar, mesmo se comparadas às de seu best-seller Uma breve história do tempo. Por exemplo, o PI é um dos elementos essenciais dessas discussões e merecia um enfoque mais detalhado. Esse achatamento do texto e a prevalência das ilustrações podem ter sido induzidos para atrair um público pouco habituado à leitura.
Outra indicação dessa indução é o tom sensacionalista do livro, com ênfase em temas apelativos como previsão do futuro, viagens ao passado etc. Um exemplo, que dispensa comentários: o título de um dos capítulos é “Prevendo o Futuro”, apesar de ele terminar com a conclusão óbvia de que isso... não é possível. Lembremos apenas que a física atual não é capaz de prever o futuro nem de três bolinhas clássicas isoladas, e que, no caso quântico, o PI eliminou as certezas até sobre o nosso tempo presente.
De forma espetaculosa, Hawking chega a generalizar o comportamento esperado de partículas subatômicas para naves espaciais e seres humanos. Esses expedientes podem ser prejudiciais para a formação crítica dos leitores. Além disso, o leitor deve ficar atento, visto que quase todos os resultados apresentados no livro, e suas muitas divagações, são frutos de modelos teóricos altamente especulativos, cuja comprovação experimental ainda não está no horizonte. Estamos, pois, flutuando em um campo onde não há nenhum dado experimental para nos fincar os pés no chão da realidade. Esses “deslizes”, contudo, talvez sejam inerentes à estrutura do gênero “divulgação científica”, que traz embutido o risco da “espetacularização” de resultados de pesquisas, e da conversão do cientista em pregador que anuncia verdades atemporais.
Com efeito, apesar de explorar as implicações de sua hipótese de tempo imaginário, Hawking não fez o mesmo com o tempo histórico real. Ignorando as determinações sociais e políticas do pensamento científico, e eliminando até a história da ciência de sua linha do horizonte, ele sucumbe à velha ilusão, ironizada no próprio livro, de que uma “teoria definitiva” será finalmente alcançada “num futuro não muito distante”. A impressão que fica é a de um livro linear e unidimensional, onde a profissão de fé positivista do autor é repetida à exaustão, de forma dogmática, por meio de incursões filosóficas, no mínimo, superficiais.
Para condensar suas crenças, Hawking serviu-se da bela e otimista passagem de Hamlet, que inspirou o título do livro e aparece como epígrafe do terceiro capítulo: “Poderia viver encerrado numa casca de noz e julgar-me rei do espaço infinito...” Todavia, é sintomático, e revelador do espírito da obra, que a continuação da frase de Shakespeare, que foi cortada da epígrafe, seja “não tivesse eu sonhos atormentados”. A contradição, as múltiplas determinações das ações humanas, assim como as limitações da razão e do discurso científico, foram banidas não apenas da epígrafe, mas de todo o livro, pois são dimensões que não caberiam na diminuta casca de noz em que Hawking pretendeu aprisionar o universo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário